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A crítica de arte tem vindo, nos últimos anos, a sofrer transformações estruturais, na maior parte induzidas por mudanças no universo da realidade mais ampla. A racionalidade económica obriga os meios tradicionais a fazerem mais com menos, ou seja: em menos tempo e menos espaço tentar chegar a mais pessoas. Por outro lado, com o uso das novas tecnologias e de uma (mais) livre circulação de informação, o meio da crítica de arte fragmentou-se – aliás, como vemos em tantos outros campos –, aumentando a sensação de perda de importância, ou perda de visibilidade. Assim, novas formas de subsistência e afirmação da crítica de arte são confrontadas com acusações de perda de autonomia e independência, e as pressões que sofre questionam permanentemente a sua legitimidade para servir de mediadora entre a arte e as pessoas.

Em 2009, a Secção Sueca da AICA (Associação Internacional dos Críticos de Arte) publicou em livro o resultado de um seminário intitulado Pressures on Art Criticism, que decorreu em 11 de Setembro de 2004, por sua vez integrado na série de conferências Forum Moderna: What is a Modern Museum? que organizou em conjunto com o Moderna Museet em Estocolmo. Neste livro, editado por Margareta Tillberg, diversos actores do meio, como artistas, curadores, jornalistas ou directores de instituições, abordam questões em torno da incerteza que parece caracterizar a crítica de arte nos dias de hoje, um tempo já de si marcado por mudanças rápidas.

Eis algumas ideias que importa reter. A discussão, é sugerido, deve partir de questões como as relações dos críticos com o mercado de trabalho e os baixos salários, as suas amizades, as suas ideologias, a liberdade de expressão, os limites para os free-lancers e lealdade aos jornais, mas levará sempre, inevitavelmente, à questão do papel da crítica de arte e dos seus agentes, da sua relevância e legitimidade. No entanto, o livro (que inclui alguns testemunhos individuais e comunicações e um painel de discussão aberto à participação do público) é dominado por movimentações ao longo de um eixo que organiza as posições relativas dos intervenientes em relação à sua maior ou menor independência.

Algumas das questões originais dizem maioritariamente respeito às condições necessárias para fazer um trabalho de qualidade, incompatíveis com os baixos salários, que obrigam a múltiplos empregos e a uma menor dedicação ou, ainda, a um menor espaço nas publicações generalistas dedicadas à crítica, digamos, mais visíveis nos dias do capitalismo actual. Apesar disto, a discussão maior concentra-se na relação entre os profissionais da crítica (que se querem ou não imparciais), e os autores das obras que os primeiros criticam, ou ainda, com os galeristas e curadores que expõem as obras.

Ao longo do livro são apresentadas várias posições. Para uns, a crítica só existe quando há fronteiras bem delimitadas, devendo um crítico ser apenas isso mesmo e não desempenhar várias funções, nem tão pouco privando com os artistas ou com os curadores. Outros assumem várias funções sem grandes pruridos, e aqui a transparência é sobremaneira valorizada: o importante é que as pessoas saibam que o autor daquela crítica é também isto e aquilo, e amigo do artista e primo do curador. Poder-se-á dizer que, quanto aos valores negativos do eixo da independência, as opiniões oscilam entre aquelas relações serem de uma promiscuidade absoluta ou apenas o produto de um meio pequeno.

Outra das manifestações do tópico da independência dos críticos de arte prende-se com a relação destes com as estruturas editoriais para as quais produzem trabalho. Aqui a discussão ganha um novo conceito e o eixo em que se baseia passa a ser menos importante perante o valor da autonomia. No fundo, o fatalismo de perceber que a maioria dos críticos está sujeita à dependência de um empregador, e portanto de linhas editoriais (que são inevitavelmente políticas), impõe uma aceitação generalizada desta relação, dando espaço à autonomia. Dentro de uma relação de dependência pode haver, segundo a maioria dos participantes, maior ou menor nível de autonomia, que se revela numa certa liberdade para escolher os temas e o estilo do artigo. Sendo claro que as condições actuais ameaçam o trabalho sério dos críticos através dos prazos apertados, das meias páginas para cobrir três exposições e da ameaça de precariedade contratual, a autonomia do seu trabalho parece permanecer, apesar do perigo que paira. Pouco mencionado, mas com razões para o ser, é o resultado de uma tecnologia disseminada e de livre acesso que pôs a competir com os críticos dos jornais os bloggers, uns mais profissionais e outros amadores. A imensa circulação e a facilidade de criação de conteúdos, tem já hoje um enorme peso na transformação a que o meio da crítica de arte está sujeito. Assim como no resto do mundo, o meio em Portugal tem vindo a conhecer transformações, e as condições para a prática da crítica de arte são cada vez mais instáveis.

No entanto, a grande questão que parece estar sempre à espreita e que se manifesta aqui e ali (mas que não domina a discussão) é: qual o papel do crítico de arte? Pouco debatida fora do tema da independência, esta questão existencial responde ser o crítico o mediador entre a arte e o público em geral. Mais do que discutir o valor de tal afirmação, torna-se importante pensar sobre a reflexividade na qual assenta. A grande incerteza que atravessa a crítica de arte não é de agora, ainda que reforçada por condições reais actuais, e será basicamente uma condição eterna. A constante redefinição da arte, dos seus limites, dos seus campos, obriga a um exercício de reajustamento da crítica, que tenta ad aeternum inventar uma linguagem que compreenda, ou comunique, uma análise mais ou menos especializada para um público mais vasto.

Para a Antropologia, a reflexividade não é novidade, assim como também não o é para a crítica de arte, e nos dois campos já produziu rupturas. Sendo certo que ambas continuarão sob constante auto-análise, a crítica de arte manter-se-á nos próximos tempos sob o escrutínio da Antropologia, num esforço de compreensão dos caminhos das representações e linguagens que aquela cria no seu desempenho.|

 


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